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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

João Cunha



Minha raiz fincou-se no chão
Desta terra dura,

Amargura corroendo o estômago,
Água impura,
Escorrendo no resto de gente
Que respira arquejando já,
No fim da tardezinha,
Uma rede estendida,
Uma lamparina pra alumiar.
O prato de comida
É a farinha, é a avoante tostada.
Ossinhos saborosos,
A óleo e sal,
Alimento só por só
Que me sustenta a andar.
A labuta é grande,
O sol é impertinente,
Resolve nunca amenizar,
A planta morre
Como morre o plantador,
Água não corre
Não sacode a terra no fundo do rio,
Tudo vazio,
Sem brilho e sem cor, 
Tudo coisa vã.
Dizem uns que se não tem livro,
Morre a alma,
Não tem mente sã.
Mas a letra não me entra,
Aqui nessas vistas embaçadas,
Nem as regras gostam de mim,
São por demais atrapalhadas.
A minha regra é a terra,
É a planta, o meu quintal.
Minha regra é minha fianga,
É o feijão, o milharal.
Não careço de tanta coisa,
Educação da mãe recebi.
Respeitar o semelhante,
Ir à missa,
Se benzer na encruzilhada,
Não insultar a besta fera,
Não contar estrelas,
No fim da noite rezar.
Pai nosso que estais no céu
E o céu era o sono
Que não dava pra adiar.
Aprendi com moça de família não bulir,
Mas pra isso não tive escola,
Escola foi o caminho,
Escola foi a luta.
Choro tanto esse destino,
Essa vida setaneja,
Ao desprezo das políticas,
À margem do desespero.
Será que sobrevivo,
Será que no meu chão morro?
Proque meu chão se desmorona,
Tá virando um alvoroço,
Vem a tal da mídia, vem a Globo,
Vem a cerveja, vem o cara morto.
E me dizem: atrasado!
Velho louco!
Como pode não ter TV,
Como pode nunca ter
Provado miojo?
E me dizem: abestado!
Velho broco!
Como pode achar que o mundo
Fica só no seu miolo?
Velho torto, desembestado,
Casado com essa enxada velha,
Faz só o que dá na telha,
Nem mulher arranja nunca.
Vive preso nessa espelunca,
Essa casa de chão batido,
Parede de barro socado,
Alisado, pintado com cal e só?
Como pode esse bocó
Não saber do mensalão?
E eu digo: posso e como posso!
Não saber dessa invasão.
Sou só, abandonado,
Pais mortos, irmãos viajados.
Sou só, não preciso mais,
Meu futuro não é o cais,
Meu futuro é a cova,
É esse chão que me coonhece, não desdenha,
Não esquece,
É esse barro debaixo da unha,
E dirão: olhem o Cunha,
Morreu sem saber nada,
Tedinho, tão bonzinho, fará falta!
E dirão: olhem o Cunha,
Se foi tão cedo,
Deixou só semente plantada.
Coitado. Ô coitado, era uma boa alma!
Se quem de criança não tem livros,
De livros não viverá,
Se não leio enquanto vivo,
Enquanto morto não me caberá.
E por isso se tiver filho,
Que difícil muito será,
Mandarei o cabra pra escola,
Pra à professora escutar.
Apesar de amar a enxada, a terra e a enxurrada,
Mais admiro o homem
Que sabe o universo estudar.
Meu universo sou eu mesmo,
Preso no meu medo
De aprender do começo,
Tão velho e sem paciência,
A coisa da ciência,
A coisa do indagar.
Sou o João,
O João Cunha ninguém,
Não quero ir além,
Quero aqui me enterrar.
E na minha tumba assim se escreva:
Aqui jaz a alma 
Que preferiu a semente como estudo,
A enxada como escudo,
À simplicidade como forma de se guiar.

Jane Santos